segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Anseios de Anciã

Não sei porque se empoleirava numa viela imunda da ladeira do Carmo, a velha árabe. D. Jamile. Tinha posses, tinha filhos abastados, todos negociantes no mercado Modelo! Era um cafofo, a casinha da velha, emprensada na ruela, mas amontoada de tapeçarias, jacarandá e cristais. Tudo muito bem cuidado pela mulata farta, Mandinha, que lhe prestava total assistência, sempre com um sorriso solícito e modos calmos de boa cria baiana, acostumada a trabalhar pra gringo.
D. Jamile era já tão velha, e sempre o fora, desde que me entendo por gente, que eu jamais a ouvira falar. Sempre que a visitávamos, tradição seguida à risca, ela ficava ali na velha cadeira de balanço ornada de travesseirinhos e rendas, sempre bem limpinha, penteada, vestida numa camisolinha de flores minúsculas e pálidas, calada... olhar perdido. Lembro-me de vê-la esboçar um sorriso oco quando alguém lhe beijava a testa. Só os adultos o faziam. Nós, crianças, éramos instadas a permanecer a certa e silenciosa distância, a fim de não incomodar...
Minha família era muito afeiçoada à dela devido ao fato de sermos vizinhos de sua filha mais velha. D. Maria Abdalla, esposa de militar de alta patente que nos tratava com imensa consideração, a despeito do posto inferior de meu pai, então sargento de carreira.
Não sei porque ressussitou D. Jamile, a esta altura, em minha memória. Mas suspeito que alguma inveja tenha evocado aquela alienação serena, bem asseada, bem visitada e amparada. Alguma coisa em mim anuncia o desejo de retirar-se para uma contemplação tão passiva quanto aquela, na qual não se divisa presença de ausência. Uma existência que, se não fosse legitimada, não demandaria tantos cuidados e apreços, mas que também já não parecia despender esforço. Antes, sem espasmos, sem contraturas, sem distenção ou tensão, apenas deixa escorrer seu fluxo residual.
E assim, foi definhando e até que, enfim, o fim. Assim eu soube. Que morrera. Simplesmente. Aquilo fora registrado em minha mente juvenil como um arquivo histórico, destituído de qualquer afeto para ser resgatado agora por um afeto tão novo e estranho quanto me era estranho visitá-la em sua apatia quando eu nem sabia que a admirava.

Um comentário:

Victor Meira disse...

Isso é muito lindo. Você tem me inspirado.