_ Deu pena ver a coitada naquela situação_ futricava a manicure itinerante a cada fregueza.
Mas ela não sabia do que se tratava, realmente. Alma, a princípio sentira-se tão miserável que fazia jus a toda a piedade alardeada. Imagine-se coisa mais pérfida! O próprio marido, aquele judeu sem vergonha! Onde já se viu roubar da própria esposa?
_ Mas isso se confirmou? Olha que é muita leviandade sair espalhando um boato desses!
_ Pois eu juro por Nossa Senhora do Perpétuo Socorro! Eu ouvi tudinho! Ele enganava ela na administração dos bens e contas, fingindo que cuidava das finanças... que ela não devia se preocupar com essas coisas, que era tudo muito complicado porque agora o governo baixara novas normas com impostos extorsivos... e por isso o lucro dos negócios diminuiria terrivelmente... que era preciso "apertar os cintos"... Mas o que ele queria mesmo era desviar o máximo de recursos para suas negociatas e para gabar-se de que ganhava muito mais.
_ Jura? Ai que dó... E Alma, o que dizia?
_ Ela foi dura com ele. Ah, foi! Disse que sabia exatamente o que estava acontecendo... mas via-se logo que sofria. Que estava alquebrada. Não era só pelo dinheiro, se bem que aquela lá só anda nos trinks... Tem gente que não topa D. Alma. Acham-na pedante... Uns e outros...
_ Absurdo! É uma mulher fina, elegante e que sabe viver bem. E trabalha! Não vive só de luxos como tantas que só exploram o marido e ainda vivem de fricotes...
_ Eu só sei dizer que ela não perdeu a pose! Mas agora é que eu quero ver... Como irão ficar, depois de tudo?
Alma sabia que tudo aquilo havia de ter uma explicação razoável. Em nome do Eterno, seu casamento era sólido como a rocha. Ela conhecia Izaque! Sabia que, distraído como era, pode muito bem ter-se enganado, errado nas contas... Acontece, afinal... Ela não queria fazer drama. Não queria abalar os alicerces da família e provocar um escândalo... Mas o contador, a secretária... até a manicure agora já sabiam! Onde já se viu? Todos sabem tratar-se de um homem rico. Ganha muito mais do que a mulher! E ainda vem lhe arrancar nacos do salário com estórias fantasiosas? Indignação. Eis o que foi pesando cada vez mais sobre o semblante de Alma. Viu-se ao espelho tão abatida. Sentiu-se tão só e desamparada. Logo agora que as forças lhe faltavam, que não tinha mais a energia de outrora, que erguer-se do leito pela manhã lhe era tão custoso? Que a artorse lhe curvava as juntas... Logo agora que começava a contar cada vez menos consigo mesma e desejava o amparo do marido, sempre tão provedor e bem provido?
Ah, Alma nunca se fez de rogada. Se era nobre de estirpe e origem, o era mais ainda de espírito. Trabalhava a semana toda, cuidava do lar, dos filhos, do marido e da vida social intensa que levavam. Tudo isso sem se descuidar de si mesma, da aparência e do lazer! Não era estorvo a ninguém, contudo, também não é de aço. E a idade pesa!
Alma foi perdendo o brilho. Quedou-lhe o semblante. Quis retirar-se, recolher-se, amofinar-se. Nem pensou em sair à noite para jantar com os amigos como sempre faz às terças. Também não recebeu ninguém e deu graças a Deus que o marido se ausentara. Uma viagem breve, mas oportuna. Aquilo lhe daria tempo para recompor-se. Elegante como é, quase à semelhança de madame De Julles, não admite a si mesma o fracasso sequer diante dos mais íntimos, sejam aliados ou inimigos.
Passaram tantos pensamentos por sua mente. Estava atormentada, mas não desesperada. Alma sabia que as mulheres têm o trunfo de se fazerem fortes justamente na fragilidade. O esposo estava notadamente envergonhado. Pelo telefone, derretia-se em agrados como se nada houvera acontecido. Jurava devolver todo o dinheiro devido e jurava muito mais... amor eterno, carinhos e mimos. Friamente, Alma aceitou todas as juras. Tinha vontade de mandar o sujeito para o inferno. Porém, manteve a classe e despediu-se respeitosamente, concordando com tudo.
Izaque era tudo o que Alma tinha. O porto seguro em sua velhice. Ela sabe que os filhos, por mais amáveis, precisam seguir com suas vidas e interesses.
Sozinha em seu leito, Alma ruminava insone, mas estática e lívida. Alinhavava idéias, porém nada se firmava. Enfim adormeceu. E sonhou o mais colorido e alegre de todos os sonhos. Sonhou toda a nostalgia de suas mais ricas fantasias, as paisagens mais belas, as pessoas mais queridas e os dias mais amenos. Havia música no ar e a jovialidade era o traço mais marcante no rosto de todos. E o que lhe parecia mais extraordinário é que ela, enquanto sonhava, pareceu acordar-se e constatar que de uma maneira assombrosa e mágica seu sonho havia sido registrado como que num filme e todos podiam vê-lo! Oh, como aquilo a confortou! Despertou tão revigorada que parecia sorrir interiormente. Depois de se deleitar com a lembrança do sonho por alguns momentos, quis levantar-se para ir ao banheiro. Levantou-se, mas ao tentar andar percebeu que o pé esquerdo doía-lhe todo como se estivesse esmigalhado por dezenas de pequenas fraturas. Sem conseguir firmar-se, Alma pendeu e caiu de volta em seu leito. Um calafrio lhe percorreu todo o corpo. Ficou ali parada, esperando que se tratasse de uma cãimbra sem importância. Tentou esfregar o pé para estimular a circulação do sangue, mas a dor foi ainda mais lancinante. Dias depois veio a se constatar uma lesão em sua coluna, agravada pelas contrações musculares do estresse vivido na véspera. Dali por diante não se sustentaria mais; andaria apenas e muito dificultosamente, com o auxílio da bengala, ou da cadeira de rodas, ainda que se submetesse a uma delicada intervenção cirúrgica e exaustivas incursões de fisioterapia.
Alma aceitou tudo com espantosa resignação. Como uma silenciosa e perpétua vingança.
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Um comentário:
Caramba, que conto bom. É assustadoramente real. Quando a gente usa a gente pra como base pra montar um protagonista, a coisa vira papo sério.
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