O quadro foi ficando mais e mais aterrador a cada pincelada. Rei morto, rainha subjugada, Gèrard reinava estúpido e absoluto, ladeado por um grupo seleto. Os amigos que lhe restaram: troféus, diplomas, coleções intermináveis de selos, bandeiras, cartas, posters, rótulos, títulos, moedas raras... e livros... muitos livros se espremendo uns contra os outros nas estantes abarrotadas que cobriam todas as paredes.
Gèrard descarregava sua fúria sobre as teclas de um velho piano no meio da sala, os dedos aracnóides, os cabelos e barbas longos e em desalinho, toda a sua figura pálida, funérea... a salivar num delírio nostálgico. Mas não tinha mais ataques alérgicos. Sentia saudades dos saraus. Não das pessoas. Quem era digno de sua companhia? Quem entendia a largura e profundidade de seu talento? Quem suportaria o esplendor de sua glória e magnificência? Todos traidores. Fúteis, rasos e imprestáveis. Não valiam mais do que esses móveis e relíquias ao meu redor. Que morram todos! E que o diabo os carregue!
_ Gèrard! venha jantar, querido!
_ Sim, mamãe! Jantaremos juntos esta noite. Espero não receber mais ninguém. Sinto-me indisposto para visitas...
Gèrard vivia de uma aposentadoria por invalidez desde que um surto psicótico o fizera investir contra a sua supostamente amada esposa e musa inspiradora por quem tantas vezes e até publicamente jurara amor eterno. Um episódio assustador que banira para sempre a jovem mulher. Dizem que casou-se novamente e vive em outro país.
Apenas sua devotada mãe permanecia ao seu lado, mas sob a guarda de poderosas medicações que continham os acessos do filho, um gênio capturado pela própria genialidade... e agora, refém de si mesmo, num idílio fantasmático... numa imensa bolha de isolamento maior do que todas as que tivera em seus tempos de infância alérgica... tão grande que jamais lhe permitira tocar outra vez qualquer fibra da realidade.
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