Não fora o paradoxo insolúvel, qualquer criatura em sã consciência julgaria tratar-se de uma alucinação. O chão formara uma pápula e eclodira repentinamente no canto direito do jardim, do lado norte. Chico, em sua lógica paranóica empanada de sedativos logo entendeu toda a situação, por mais inusitada. Era claro: só podia ser o retorno de seu ex-sócio avaro, bizarro, e terrivelmente terroso brotando da terra como um diabo para vir buscá-lo. Franziu o senho arquitetando uma reação à altura de tamanha ouadia. Silenciosamente e espreitando ao redor, Chico levantou-se do banco em que velava, solitário, a tarde morna. Marchou célere até o montículo de terra e tão logo viu despontar a cabeça enlameada, saltou sobre ela!
Ah, sim, ele se renderia ao fantasma e se lançaria sobre ele sem ajuda. Quem sabe encontraria no fundo daquele buraco um inferno mais aprazível do que aquele em que vivia de lembranças malditas e cada vez mais confusas? Oh, era pavoroso acordar todos os dias naquele hospício somente para assistir ao tempo passando modorrento entre horários de remédios, passeios ao sol, refeições insossas, e enfermeiras carrancudas.
Chico se jogou de corpo e alma sobre um fugitivo que cavara o túnel de pouco mais de oitenta centímetros de diâmetro, numa extensão de quase mil metros, juntamente com outros dois prisioneiros. Infelismente os desnorteados cavaram na direção errada e foram dar num asilo! Quanto trabalho desperdiçado!... Mas do presídio rodeado por muros imensos e com uma arquitetura que mais parecia um labirinto era quase impossível orientar-se. Ainda mais depois de tantos anos cumprindo pena enquanto a cidade crescia e mudava de feição tão rápido quanto tudo o que acontece hoje em dia. Nem as metáforas duram mais...
Quando, finalmente, Zé Canivete destampa a terra de sobre si e vê o céu, deste lhe cai: Chico! Tudo escureceu novamente, mal Zé tomara fôlego na superfície. Sem tempo para pensar, apenas procurou livrar-se do fardo flácido e roliço, mas este, como uma rolha, vedara o buraco e escorregava túnel adentro, deixando os dois corpos em um constrangido valete.
O estreito canal dilatava-se com a passagem dos dois, deslizando lentamente no barro movediço. De tal forma que as estacas cuidadosamente colocadas na curva do fosso cederam. Estava tudo acabado. O ar escasseava, a escuridão era densa e úmida e ninguém se mexia mais.
Os comparsas que vinham atrás, rastejando sentiram o baque, viram tudo virar breu e entraram em pânico! Num impulso passaram a rastejar à ré, buscando a abertura atrás de seus pés. Para seu momentâneo alívio, perceberam que era possível retroceder com relativa facilidade. Contudo não puderam deixar de pensar: seu amigo estaria, provavelmente, morto naquele momento! Enterrado vivo! Sequer sabiam o que dera errado lá em cima. Nunca mais ousaram desbravar o túnel. Julgaram-se assim, culpados de mais um crime, além de tudo.
No asilo ninguém entendera o sumiço de Chico, tampouco alguém se dera conta da depressão no canto remoto do jardim, logo camuflada por gramíneas.
Somente muito tempo depois, quando mandaram cavar um enorme buraco para instalação de uma fossa, os cadáveres de Chico e Zé foram encontrados como que abraçados, mumificados em uma funesta solidariedade, cada um agarrado aos pés do outro.
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