terça-feira, 25 de novembro de 2008

Água Benta

Tomou-me, docemente, pela mão e conduziu-me em silêncio através do imenso e sombrio corredor. Eu ía olhando os azulejos que contavam velhas histórias, enquanto meus sapatinhos e os da irmã Maria José tamborilavam delicados e agudos, o taboado. Eu não sabia para onde ía. Mas me sentia feliz e honrada por acompanhá-la. Por que terá ela escolhido a mim?
Finalmente chegamos ao topo de uma escada bem iluminada pelo enorme vitral acima do átrio da capela. Descemos os degraus, silenciosas. Ao lado do portal em arco, um recipiente de água benta ficava suspenso. A irmã Maria José umedeceu seus dedos muito brancos e finos, levou-os ao rosto e desenhou duas pequenas cruzes invisíveis sobre a testa e a boca, depois se benzeu, de olhos fechados, sussurrando alguma coisa. Fiquei observando apenas. Nada daquilo me parecia importante. Mas quando ela tocou novamente aquela água mística e molhou-me a fronte, eu senti um ódio mortal! Como se uma ferida me houvesse sido posta entre os olhos. Com que direito esta senhora me impõe tal estigma? Que dirá a minha mãe, disto? Somos protestantes! Agora eu estou contaminada com essa água católica, bem na cara!
Entramos solenemente na capela, pela porta lateral e nos assentamos num dos bancos, lado a lado. Ela rezava, eu maldizia... Ela suspirava baixinho suas ladainhas. Eu bufava, submissa, a minha raiva e, atordoada, pensava: como uma criança pode se defender? Lembrei de Cristo dizendo: "Deixai vir a mim as criancinhas..." Pois muito bem, eu vim, e de que forma sou recebida? Mas Ele não estava ali para impedir o abuso. Só os anjos de barro e cera, uns santos tristes e um crucifixo no altar. Mas eu não podia apelar a eles, não acreditava em ídolos, não rezava e não adorava imagens. Que ironia! Perdida na casa de Deus! Restava-me esperar a chance de sair dali e correr para lavar a cara, do beijo bento que me latejava a testa.
Fiquei sentada, quieta, balançando as pernas cobertas até os joelhos pelas meias brancas e pelo vestidinho de anarruga verde/branco do uniforme.
Depois de um tempo que me parecera uma eternidade, a freira me sorriu aliviada por ter concluído suas orações, como se visse o seu anjo da guarda. Ergueu-se, estendeu-me a mão e convidou-me ao recreio no pátio da escola.
Andamos todo o trajeto de volta pelo corredor sem dizer palavra, eu e o "sacro-santo pinguim" que me tirara dos folguedos de criança para a funesta iniciação na capela que cheirava a incenso e mofo.
Quando a luz do pátio adentrou ao prédio, por uma das portas laterais eu me desprendi e saí em disparada. Não parei de correr até chegar ao pequeno córrego, no jardim. Agachei-me, enchi as
mãos da água que saía quase gelada da pedra e banhei todo o rosto várias vezes, numa ânsia purificadora.
Ao ver-me em tão febril ritual, o velho jardineiro do convento riu aquele seu riso farto e disparou: "Isso, menininha... pode aproveitar, é pura como água benta! Hehehehe.

2 comentários:

Victor Meira disse...

Hahaha, assustador! Sensacional! Gostei demais, demais. É sublime e gostoso, tem foco no desfecho e a personagem é conduzida pela mão do começo ao fim. Muito bom isso.

Só um detalhezinho, uma dica: é bom evitar o adjetivismo. Como disse Quiroga: se o substantivo é bom, ele dispensa o adjetivo. E teu texto é cheio de bons substantivos. Dá pra tirar um pouco da gordura.

É isso, e é ótimo! Adorei.
Beijo!

Lírica disse...

Tirei uns dois adjetivos... mas se quiser sugerir outros que sejam dispensáveis, pode falar. É que eu devo estar com saudades de ler Dostoiéviski, com sua adjetivação ostensiva... hehehehehe