Fazia já um ano, Sr Pedro caminhava de um para outro médico, cuidando de suas chagas. Caminhava é modo de dizer. Mancava. A diabetes ía avançada. Dois dedos do pé direito e um da mão já haviam sido amputados. Agora, uma nova úlcera o olhava da ponta do dedão direito com seu olhar remelento. E doía. Doía de dar dó...
O doutor olhou o pé de Pedro, olhou os exames, torceu o lábio, suspirou e, finalmente sentenciou o que sr Pedro ainda sonhava não ter que escutar. Mas não havia mais jeito. Aquilo nunca ía fechar. Era como essas mágoas que se carregam pela vida, que consomem a alma e nunca encontram destino. Sr Pedro ponderou: "É... não tem jeito mesmo, não é, doutor?"... Assim, só pra ter uma confirmação do que não queria crer. Devia estar pensando o que poderia ser pior: andar com aquele resto de pé, meio podre e dolorido, ou sem ele. Andar sem ele... como se fosse possível! Pularia como um Saci, ou se arrastaria com uma muleta, inválido... com aquele hiato entre o chão e o coto pendente.
Sr Pedro sofria. Mas tinha dignidade. Não poderia jamais se conformar em ver aquela ferida penetrar-lhe a carne, os ossos, as correntes da vida. Que o mal fosse cortado pela raíz! Cuidaria do outro pé com todo o seu amor. Esse já se havia degenerado. Calcanhar em fendas, dedão em carne viva e purulenta. Seu vizinho, enegrecido, cianótico, envergado, parecia querer deitar a cabeça sobre o amigo moribundo. O resto era cicatriz e dor.
O que deve ser ver-se apagar assim do cenário, pelas margens, como uma figura de revista, descuidadamente recortada pelas mãos de uma criança displicente?
É como precisar partir e não ter coragem para ir-se de vez... vai-se indo aos poucos...
Ou... quantos dedos terá sr Pedro que perder para não dizer adeus?
Objetivamente falando, ninguém chega a tal ponto sem ter sido negligente com a própria doença. E daí? Faz-nos algum bem sabê-lo? Acaso a vida nos podou, a cada erro que cometemos?
E se ele negara veementemente a sua doença, tentando ignorá-la enquanto achava que podia? Correu até deixar um pé pelo caminho.
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2 comentários:
Cara, eu tô cada vez mais pasmo. De verdade, isso aqui tá em nível de publicação. Atingiu uma originalidade estilística, um controle da ferramenta léxica e narrativa, com questões relevantes em todos os textos.
Vou ler esse conto mais umas 20 vezes, se pouco.
Desse Pedro, meu Aristeu Jardineiro (com humor de Aquiles) diria: "melhor um pé na mão do que dois voando".
Quanta questão boa!
Victor, vc deveria se chamar Valério, que significa: incentivador! Fico eufórica com as suas análises sobre os meus textos. Na verdade, esse texto tb me impressionou. É que ele foi escrito de coração, com muita verdade, muito sentimento.
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