quinta-feira, 5 de julho de 2007

Rânia

Não que Rânia fosse feliz. Não era. Atormentada e triste fora toda a sua vida. Sua natureza, entremeada de elementos funestos, a memória embebida em lembranças negras como monstros notívagos que povoavam seus sonhos e transtornavam sua existência.
Crescera numa casa pequeníssima, suja e miserável; acumulada de trastes e promiscuamente superlotada de parentes e irmãos, além do pai alcoólatra e da mãe melancólica.
Trajando não mais do que imundos trapos, Rânia atravessou a infância infeliz, sob as mais abjetas ameaças: de fome, frio, abuso, desnutrição e ignorância. Para não mencionar as constantes humilhações.
Cercada de uma pestilenta vizinhança de vagabundos, viciados, prostitutas e alguns paupérrimos proletários, entrou na puberdade, já habituada à miséria, não fazendo mais caso das privações que rotineiramente enfrentava. Contudo, a adolescência trazia novos desafios e temores. Além da desdita de ser pobre, Rânia, contrariando todas as expectativas para as suas humildes condições, era bela! De um porte altivo, e com traços de uma herança européia distante. Tais atributos despertavam a lascívia e atraíam os olhares mais ávidos e inescrupulosos que já pairaram sobre uma angelical, mas já voluptuosa, menina-moça. Certo vizinho asqueroso, uma noite, acercou-se dela e tentou agarrá-la á força no breu imundo de uma viela, quando esta retornava de seu curso profissionalizante noturno. Sorte sua, o desgraçado estar tão embriagado que mal podia consigo mesmo. Tomando pelas fuças, todo o ímpeto da mochila de Rânia, foi de cara numa poça de lama, onde ficou chafurdando e praguejando como um animal raivoso enquanto a jovem assustada e indignada, em desabalada carreira buscava o abrigo de sua casa.
Pálida e quase sem fôlego, tentou contar, ofegante, o incidente, a todos que ali moravam, mas quanto mais restabelecida a sua respiração, mais acentuada a sua noção, de quão indiferentemente todos ali recebiam os fatos. Que diferença faria àqueles circunstantes, se mais um ou menos um era ofendido, ultrajado ou violentado? Eles almoçavam e jantavam violência todos os dias! Ora, oferecessem-lhes um prato diverso e mostrar-se-iam mais apetecidos. De mais a mais, Rânia estava inteira. Apenas assustada. Aquiescendo sua indignação, deu de ombros e foi deitar-se.
Mas nem tudo era só desgraça e sofrimento. Mesmo na mais decadente família há aqueles momentos enternecedores nos quais alguém nasce, se casa, ganha no bingo... Ou encontra algo de valor no chão da rua ou no trem. E mesmo o mais desafortunado dos sujeitos, de vez em quando, tem lá seus momentos de majestade no gozo do amor venal, na embriagues de uma paixão avassaladora. Ou na viagem vertiginosa do barato de uma droga. Desses retalhos, mesmo puídos, se compõe a vida de muita gente.
E foi assim que Rânia, que também pe filha de Deus, conseguiu o seu primeiro emprego numa fábrica local, ganhou um concurso de rainha da primavera do bairro... E um dia, se apaixonou por Oswaldo, se grande amor. Motorista de praça, boa pinta, sedutor, Oswaldo já tinha seu pé de meia quando também se enamorou de Rânia.
Depois de alguns meses de intenso romance, casaram-se, a despeito das muitas advertências de amigas mais experientes. Rânia nem ligou para os comentários maldosos. “Tudo intriga de gente invejosa que não sabe ver ninguém feliz”.
Não foram felizes para sempre, mas isso todos nós já podíamos imaginar. A vida seguia como podia. Rânia foi-se conformando. Que mais lhe restava?
Um dia, voltando do trabalho, tagarelava com as amigas, quando soube da novidade:
__ Não sabia não, menina? É moleza! Você faz uns exames, doa seu sangue ou se torna voluntária pra umas pesquisas com remédios novos e ganha uma “graninha” até razoável! Dá pra tirar o pé da lama!
__ Credo! Esse negócio aí, de ser cobaia, deve ser perigoso! Eu, hein?
__ Perigoso nada! É muito seguro. Eles fazem muitos testes com animais antes. E depois, se alguma coisa der errada, a indenização é gorda! Por um nadinha assim você fica milionária!
__ Não sei não... Talvez eu vá ver isso de perto. Não seria mal poder comprar umas roupinhas novas pros meus moleques, trocar a geladeira...
No dia seguinte, lá estava Rânia na fila de voluntários. Literalmente, dando o seu sangue pela sua família, pelos seus sonhos...
Fez os testes e foi para casa, esperar os resultados. Mal dormia, tamanha a ansiedade com que esperava o momento de receber aquele dinheirinho. Custasse o que custasse. Nem que tivesse que virar um rato de laboratório!
Dia de buscar os resultados de exames! Rânia se apresentou ao guichê, mas ao entregar a senha, percebeu o ar apreensivo no rosto do funcionário que a tendia.
__ Sra Rânia, queira me acompanhar, por favor.
__ Por que? O que aconteceu? Deu alguma coisa errada com os meus exames?
__ Receio que sim. Mas o médico poderá lhe explicar melhor.
__ Ai, só falta, eu estar grávida de novo!
Depois de alguns do mais terríveis momentos de sua vida, Rânia deixou aquele hospital num estado de desolação tal que não encontrava forças sequer para voltar para casa. No caminho, só conseguia pensar em como foi cega e tola por tanto tempo... E começou a crescer em seu coração um ódio como ela jamais suspeitara poder sentir.
Seus exames acusavam que o seu sangue, bem mais precioso que possuía e estava disposta e dar em sacrifício, na verdade estava infestado de moléstias contagiosas, dentre as quais: sífilis, AIDS e hepatite C, contraídas através do seu promíscuo marido que sempre a traíra desavergonhadamente. Ela reuniu o que tinha de forças e, chegando em casa, deu um jeito de deixar as crianças na casa da mãe enquanto esperava o marido para o acerto de contas. Recebeu-o aos urros de pragas, aos tapas, e chegou a te a esfaqueá-lo no braço e no abdome, de raspão. Viu correr aquele sangue infecto, mas o miserável não morreu. Nem Rânia morreu até hoje. Separaram-se e ela vive de uma magra pensão, de seu parco salário e de seus ingênuos sonhos de uma vida feliz. Às vezes afunda em surtos de depressão e deseja muito, dar cabo da própria vida. Mas quem morreu foi a sua irmã. De aneurisma cerebral, na semana passada, aos 28 anos.

Um comentário:

Victor Meira disse...

Po, muito legal. O retrato me parece bem real, se bem que a história, quando se fala em "exame de sangue" fica bastante previsivel até o fim. Mas o maior problema sem dúvida é o tamanho do texto. Na internet, ninguém quer ler mais que vinte e poucas linhas, é diferente do papel impresso... Bom, fora isso, o que eu mais gostei foi a descrição inicial, que tá bastante floreada e imagética. Bem legal mesmo.