sábado, 7 de julho de 2007

O Chá

__O sr Justo é um homem bom.
__ Ele é um cabeça-dura, um velho esclerosado e teimoso!
__ Ele tem bom coração e só é mal compreendido. Esclerosado, na nossa idade não é defeito. É pré-requisito!
__Um neurótico, obcecado!
__ E você é o sr PERFEITO? Agora mesmo, percebo bastante neurose em seus comentários também! E baba na sua lapela.
__ Não, não sou perfeito. E não é o meu caso que estamos discutindo aqui. Um pouco mais de chá, por favor.
__Quer dizer que é assim que você o vê?
__ Quem, o Justo? Claro. Ele é um fanático.
__ Mas você há de convir que não resta muito ao coitado, sobre o que falar. Tantos planos e sonhos, mas o que tem ele, quase ao fim da vida? E que novidades teria para contar aqui, nessa vida tão plana, rotineira e uniforme? Quando chegamos aqui, somos o que trazemos na bagagem e na memória.
__Você me faz lembrar que ainda tenho muito a fazer hoje. Não posso me alongar neste recreio.
__ Mas o que pretende fazer?
__Ah, minha cara, tenho muito trabalho e sou esperado para uma reunião importante. Tenho negócios urgentes a resolver. Queira me dar licença. Ora, vejam! A sra Marta vem se aproximando. Vou deixá-la em boa companhia.
__ Yolanda, querida! Como você está hoje? Aquele era o Máximo?
__ Sim, todo afobado, achando que vai salvar o mundo ainda hoje.
__Yolanda!
__É verdade. Põe-se a fazer chacota da vida e comportamento de todos, então merece receber o mesmo tratamento.
__ Bom, mas o que é que se pode ter de urgente e importante a se fazer por aqui, não é mesmo? A menos que um incêndio ou terremoto agitasse as coisas, não há como sair da rotina.
__ Então porque fingir que ainda temos alguma importância?
__ Deixe de amarguras. Todos nós já tivemos nossos dias de glória e devemos ser gratos por estarmos em tão bem, considerando as nossas idades.
__ Belo consolo! É como assistir ao próprio enterro, viver aqui.
__ Então, o que sugere? Uma revolução? Um motim?
__ É. Não temos escolha, não é mesmo? Ou somos soterrados e sufocados pela vida, ou pela morte...
__ Estamos vivas, não estamos? Isso deve ter algum objetivo.
__ Marta, Você disse algo muito intrigante agora. Deu-me a nítida impressão de que eu passei a minha vida inteira girando em círculos e me desgastando...
__ Juro que não foi esta a minha intenção!
__ Há, eu sei. Mas pense comigo. A gente passa a vida toda tentando dar satisfações aos outros, querendo ser amada, aceita; tentando mostrar competências; fazendo sacrifícios... De repente, recebemos a chance de não dever mais nada a ninguém e em vez de relaxarmos, achamos que vida perdeu o sentido!
__ Agora você deu um nó nos meus miolos esclerosados e atordoou mais ainda os meus neurônios senis. Desse jeito eles não vão nem acertar me levar de volta para o meu apartamento!
__ Querida, o que eu quero dizer é que fomos alforriadas! Não temos mais que provar o que quer que seja! Até alguns minutos atrás eu pensava que estava enclausurada numa gaiola de ouro, exposta como um troféu inútil da sociedade da qual sou um produto: uma mulher exemplar que viveu com dignidade, mas não serve para mais nada e não pode, por razões éticas, ser simplesmente eliminada como refugo, então é guardada num asilo até que se canse de existir. Porém, neste exato momento, vejo-me do outro lado! Eu é que sou livre e privilegiada. Não os que me sucedem!
__ Ok, Yolanda, tem certeza de que é chá, o que está tomando?
__ Acha que eu estou delirando? Querida, pense nas coisas que fizemos e em tudo o que passamos. Somos sobreviventes!
__É verdade... É verdade. Somos fantásticas. Ih! Está na hora de tomar o meu remédio. Vemo-nos no jantar, querida. Até mais.
Eu acho que deveriam chamar o Dr Half para ver a Yolanda. Ela não está nada bem esta tarde...
Ao se retirar, Marta deixou Yolanda divagando, à mesa do chá. De repente, naquela face sulcada de angústias, talhada no sofrimento, desgastada pelas frustrações mais variadas no decorrer de uma vida de lutas, labutas e desilusões, surge sorrateiramente, um vestígio luminoso de felicidade. Um contentamento morno e insidioso; que surge misteriosamente do acaso e lhe acaricia todo o ser, como uma mão que afaga a alma.Yolanda sorriu largamente, sentiu seus olhos umedecerem e fez uma resolução transbordar de seus lábios trêmulos, num sussurro solitário à brisa da tarde:
__ Escreverei um livro. Deixarei um legado. Não por dever, mas pelo prazer de partilhar idéias e de manter acesa a chama que ilumina a minha mente enquanto eu existir. Lerei livros também. Manterei contato com as mentes pensantes, vibrantes e estarei sempre renovando o meu entendimento.
Mas não foi fácil para os seus companheiros contemplarem aquele rosto, outrora duro, taciturno e expectante, contrariar as marcas dessa personalidade impressas na expressão severa, agora substituídas por sorrisos constantes e expressões de bondade. Não. Aquilo estava errado... Aquela não era Yolanda, mas uma máscara sardônica, imbecilizada, com pretensões de felicidade eterna. Insuportável. Não era a Yolanda ácida e astuta, de mente irrequieta.
__ Parece que nada mais incomoda Yolanda!
__É como se ela estivesse morta e se achasse no céu, entre anjos.
__ Completamente demente, a coitada...
__ É perigoso deixá-la por aí, andando nas nuvens, sorridente como se entendesse a linguagem dos pássaros.
__Sem falar nas horas perdidas entre folhas e folhas de anotações! Quanta alienação...

Um comentário:

Victor Meira disse...

Gosto muito de O Encontro, disse isso desde a primeira vez que o li... As personagens são de certa forma mais vivas e interessantes que as dos outros contos. A simplicidade da narrativa, as caracteristicas imagéticas das personagens, o ritmo linear... Foi um prazer relê-lo.