terça-feira, 12 de maio de 2009

O Surto

Não era Viena, nem eram os anos vinte. Era interior de São Paulo, mesmo, século vinte e um. Lúcia terminara seus afazeres, as crianças dormiam, graças a Deus e o Dr Lucca, como sempre, chegaria tarde. Era a hora mais tranquila do dia, embora nenhuma segurança seja completa. É sempre bom estar-se prevenido. Lúcia já checara as portas, desligara o gás, verificara a previsão do tempo e o horóscopo. Agora, confinada em seus aposentos, untada em cremes faciais e corporais, entregava-se lacivamente a doses potencialmente letais de chocolate, revista Capricho e black music. Quem lhe atiraria a primeira pedra? Depois de um dia estafante, o que lhe poderia restar? Nem pra o patrão ter outra conversa daquela com ela... Lúcia deixava cair a revista e se perdia em devaneios toda vez que se lembrava do Dr Lucca todo comovido, lamentando a separação de sua esposa e confessando-se totalmente dependente da ajuda de sua fiel babá-governanta-tutora-enfermeira-faz-tudo... para ajudá-lo a criar seus filhos... "Ele me olhou de um jeito especial. Eu tenho certeza! Ele não iria admitir, mas está apaixonado também". Era por aquele olhar que Lúcia suportava tantas responsabilidades, as saudades de sua mãe, e as intrigas das outras empregadas da casa, sempre cochichando e hostilizando a sua frágil pessoa. "Como podem ser tão cruéis com alguém tão inofensivo como eu, uma pessoa doente?". Nada demais... Lúcia tinha sinusite.
"E como se não bastasse, ter que aguentar aquela lambisgóia oportunista da D. Kátia... Só vive aqui dando em cima de Dr Lucca... Bem feito que ele deu uma bronca nela! Também, parece que não se enxerga! Onde já se viu querer mandar nas crianças? Dar ordens?!... Mas sobrou pra mim... Fiquei de incompetente, que não sabe fazer as crianças se comportarem... Tomara que ela nunca mais volte aqui!".
Chegaram as férias, mas Lúcia, em vez de feliz pela oportunidade de ir visitar sua querida mãe, estava agitada e apreensiva pela idéia de afastar-se daquela casa, das crianças que amava como se fossem suas, e especialmente pela idéia de distanciar-se de seu patrão que, embora correto, recatado e sério, despertava-lhe um paixão premente.
Nem bem chegara à sua cidade natal e uma crise nada convencional de sinusite a acometia. Tinha calafrios, dores de cabeça lancinantes, mas em vez de sumir-lhe totalmente o olfato, era acometida da sensação de que um odor intenso de terra molhada a acompanhava aonde quer que fosse. Nada que os médicos pudessem explicar-lhe satisfatoriamente.
Quase louca com aquele odor persecutório, Lúcia comprimia a cabeça com as duas mãos. Uma mistura de náusea, saudades dos seus meninos, tédio e medo de que seu patrão se enamorasse de outra em sua ausência... tudo isso fê-la entrar numa espécie de transe.
Ao entrar na sala, Magnólia, uma amiga que vinha encontrá-la para um passeio, deu com Lúcia só de calcinha e soutien sentada no chão, brincando de jogar a água do vaso de flores na manta do sofá e depois tentando fazer uma espécie de castelo ou pirâmide com aquele pano ensopado!
Sem fazer alarde, aproximou-se:
_Posso brincar também?
_Claro! mas só um pouquinho. Se o seu pai nos vir aqui, vai zangar! Ele não gosta que brinquemos com terra.
_Então o papai é chato!
_Não, claro que não. Ele é cuidadoso e não quer que você pegue uma micose, mexendo em terra molhada...
Nesse instante, Lúcia recobra a consciência, olha para Magnólia e sorri, meio sem graça...
Magnólia acaricia-lhe os cabelos e sorri, sem nada dizer.
_Não conte para a mamãe, Mag... Não lhe diga que me viu neste estado. Mas... por algum motivo não sinto mais o maldito cheiro de terra molhada!

2 comentários:

Anônimo disse...

Nao tem nem como sentir saudades da cidade do interior, por causa dos relatos aqui hehe.

Victor Meira disse...

Caramba... que pira.