A proeminente calva mais ainda se pronunciava pelo curvar da fronte. Um emaranhado cabelo brotava irregular do alto da cebeça e amainava pela nuca. A cutis sudoreica untava a decadente cabeleira. O rosto era grave, fronte abaulada, têmporas restritas em contraste, e uma carúncula esdrúxula a saltar da costeleta direita. Dir-se-ía um lipoma de aspecto tosco, fusionado, a fazer irregular o feitio da face já grostesca. A barba, trazia bem escanhoada, entretanto. Mas os dentes ponteagudos e amarelados compunham com as sobrancelhas um conjunto gótico, quase macabro.
Ergueu o rosto lívido, contraiu os lábios rotundos num ensaio funesto de sorriso maquinal. Cumprimentou-nos respeitosamente e apontou-nos as poltronas com a mão enorme, sugerindo que tomássemos assento. Eu quis correr, mas não pude.
Fiquei paralisada a espectar nefasto cavalheiro. Aquele espectro no sombrio e insalubre escritório, perdendo o viço, incorporando o pó, o verniz, talvez, a brancura das paredes, o encardido das cadeiras e o ar que pairava pesado entre nós.
__ Em que posso ser útil? - Como aquela voz podia soar tão agradável, suave e terna? De onde tal docilidade brotava? Era quase um "homúnculo das cavernas" burocráticas. Um exemplar raro de uma espécie em extinção nestes tempos tecnocráticos. Um escrivão.
Ainda que o tenhamos procurado com definidos e específicos propósitos, eu me perdi completamente na contemplação daquela imagem diáfana e ambígua que me causava terror e paixão instantâneos. Fitei-o tanto que temo tê-lo constrangido. Mas só ao cabo de muito tempo dei por mim naquele embevecimento. Por algum motivo insondável saí do transe em que estivera, no qual não distinguira o diálogo travado entre meu noivo e o escrivão... Eram ondas sonoras vagas, entremeadas de silêncios mórbidos. Num estalo, voltei a me sentir real e fazendo parte do cenário. O escrivão sorria solícito oferecendo-me a caneta para que assinasse. Fiquei atônita, olhos cravados naqueles dedos pálidos, arqueados que pareciam trazer-me do além um mal presságio.
Num ímpeto, saltei da poltrona e saí em disparada, buscando a luz e o ar do lado de fora do prédio, com a premência de quem se vê sufocar pelo terror noturno, o coração em descompasso, querendo sair das entranhas!
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Um comentário:
Tô pasmo. Isso é um Allan Poe fêmea prestes a casar. Quanta fúria entremeando os meandros adjetivados dessa narrativa! Quanto sentimento e que descrições fantásticas! É bom demais. Bom demais.
Bom demais!
Casamento e morte. Engraçado ser contado por uma mulher. Do ponto de vista de uma jovem personagem, o medo mortal do confinamento matrimonial.
Sei que quase todo homem sofre desse terrível medo. Mas que mulher vê o Ceifador encarnado no escrivão, prestes a condená-la a 100 anos de solidão?
Que coisa.
Que texto.
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