Acreditava-se acima de qualquer desafio. Impávida e ávida, devorava livros, mergulhava em qualquer poço onde houvesse um novo saber. Queria o conhecimento com a gana insana de uma paixão, de uma pulsão. Às vezes pensava tanto que se sentia à beira de um precipício. Idéias se sobrepunham e cirandavam em sua mente atormentada, querendo achar seu lugar, querendo se acomodar num sentido qualquer. Seus pensamentos se sucediam como automóveis num interminável engarrafamento... motores ligados, combustível queimado, ar sufocante, pressa, urgência, ansiedade, mas quase nada andava, nada fluía, não se chegava a lugar algum. Milhares e milhares de conexões explodiam em seu cérebro abarrotado, infomaníaco, pra quê? Sua lógica impertinente e voraz criava realidades intragáveis! Sua fronte se expandia, pesada, ameaçadora, seu olhar injetado de sagacidade inquiria e desafiava a quantos o encarassem. Era cada vez mais ríspida em seu trato até que o seu afeto todo se moldasse à razão... à sua própria razão... O isolamento era inevitável. Como suportar a mediocridade alheia? O mundo lhe orpimia, lhe causava tanta repulsa que os músculos se lhe contraíam, encolhíam, como se quisessem se recolher no interior de si mesmos. E quanto mais estudava e lia e buscava conhecimento, mais infeliz se tornava, mais solitária e desafetada. Era admirada, porém temida. Era respeitada, mas evitada. Pesava-lhe tanto a mente inchada de conhecimento que lhe esmagava a vértebras, que lhe espremia a medula, que lhe estrengulava os nervos.. E doía. Doía o corpo todo, assim como se insurgisse num motim! Numa revanche! Ah, isso a irritava. A cada dia seus movimentos se tornavam mais limitados, o pescoço enrigecido, dores lancinantes, náuseas, espasmos e até a paralização ocasional. Cãimbras, formigamentos... O corpo todo se rebelava contra a inaceitável hegemonia cerebral. Tornava-se cada vez mais doente, ombros contraídos, busto farto, dorso encurvado, membros atrofiando progressivamente. Fronte proeminente, sulcos de expressão mais e mais profundos, marcando a mímica, de tão grave quase burlesca.
De mulher astuta, fora-se tornando andrógina, fria, distante, pétrea. Parecia querer erigir uma estátua em homenagem a si mesma. Ainda respirava, porém, com dificuldade. Morreria em breve, talvez. Mas um dia, um de seus livros, um mais amistoso e sábio, lhe contaria um segredo. Algo tão maravilhoso e libertador que faria as pazes entre sua mente e seu corpo. Algo que, como um incenso suave lhe acalmaria os sentidos. E como um óleo lubrificaria suas juntas travadas e emperradas. E como uma compressa morna lhe aliviaria as dores e contraturas. E como um toque divino, lhe curaria a ânsia febril de estocar falsos saberes.
O livro piedoso lhe dissera, amorosamente, de seus medos e fragilidades, de seu desamparo e terror, e da inutilidade de seus esforços tão árduos. A couraça esmuiçou-se em incontáveis pedacinhos. Desfez-se em grãos... Foi como morrer. Mas em seu interior ainda havia, espremida e frágil, uma porção de vida. Regredida, mas ainda pulsante.
Agora, recém-nascida das cinzas, recomeçaria... mas de um jeito diferente.
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2 comentários:
Que pesado. Protagonismo bem fundamentado é outra coisa. Escrever em primeira pessoa numa personagem distante de si é encontrar-se naquela instância. Quando a base é o próprio escritor, a leitura exige cumplicidade por parte do leitor, como se lesse uma confissão de alguém que procura a si mesma em prosa.
Não achei que ia terminar tão bem. No fim, embarca-se em narrativa e distancia-se do aspecto confessional, o que alivia e desdensifica (uhul, neolô) o conto. Rola criatividade mesmo, coisa boa.
Muito legal.
Belo conto. Imagens fortes e narrativa fluida, gostosa. Denso sem pesar, nem "inchar a mente". Muito obrigada, seu conto bateu em mim assim como o livro amigo amistoso e sábio da moça.
Parabéns,
Lírica
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