O que havia de mais sensacional naquela figura impoluta, na minha opinião era a sua coragem... Mas também não seria para menos. Depois de fugir de casa aos onze anos e se aventurar na grande São Paulo dos anos quarenta, dormindo em caixotes de feira e vendendo chuchu por comissões mais magras do que as suas perninhas velozes... Só Deus sabe o que terá ele enfrentado naquela infância abortada pela miséria. Vida madrasta, pai violento, escola? um sonho. Deixou tudo pra trás e fugiu. Trabalhou duro e enfrentou o mundo com punhos cerrados.
Um dia, moço feito, descobriu que precisava servir à pátria, mas foi a pátria quem mais lhe serviu. Serviu comida da boa, posição social, treinamento e saúde, dignidade como nunca tivera e um magnífico uniforme militar de arrebatar corações. Tornou-se, então, sargento do exército! "Sentou praça", fez pé de meia, constituiu família. A felicidade era tanta com as portas e janelas que se lhe abriam que nada lhe parecia suficiente. Tornou-se um alterofilista invejável, campeão de tiro e dia-a-dia mostrava uma capacidade de liderança que chamava a atenção de seus superiores hierárquicos.
O sargento fez cursos que o tornaram tenente e logo se engajou nas empreitadas de elite de sua companhia. Era um homem de confiança e não temia nada. Entrou para o serviço secreto e tornou-se um mito mesmo entre os colegas. De tão destemido era apelidado de "Zeca Diabo"! Não só cumpria fiel e honrosamente as suas missões como era exímio contador de histórias de aventura e coragem, nas quais ele, freqüentemente era o protagonista! Carismático, ganhou muitos amigos e respeitabilidade.
Aos olhos da sociedade, tratava-se de um exemplo de homem de valor. Reconciliou-se com a casa paterna e vivia feliz, a não ser pelos ciúmes que o consumiam. Tinha uma mulher muito submissa e humilde, mas era dilacerado pelo medo paranóico de ser traído. Eis a terrível fraqueza de um homem aparentemente inabalável! E assim viveu ano após ano, dissipando o medo em festivas cervejadas de fim de semana, ou chorando em silêncio na solidão. Mas quando o dever lhe chamava, ressurgia das cinzas o herói imbatível que enfrentava os bandidos mais cruéis e impunha respeito mesmo aos mais abjetos e temidos criminosos.
Não desgrudava do seu revolver nem mesmo quando estava em casa! Tinha manias pitorescas como: pendurar um caldeirão por uma colher no alto da porta de casa para servir de armadilha a possíveis ladrões. Ou levantar de madrugada para montar guarda na janela de casa, vigiando o estacionamento do prédio, como se quisesse brincar de tiro ao alvo com eventuais gatunos noturnos. Coçava-lhe o dedo, o gatilho e parecia ter sede de varrer da Terra qualquer resquício de bandidagem. No fundo, no fundo não gostava de violência. Fazia de tudo para não bater nos filhos, mesmo quando esses mereciam. E quando o fazia, caía em pranto arrependido, secretamente, e passava dias depressivo, taciturno... Mas era rígido. Em casa todos o respeitavam e até temiam. Menos a filha mais velha que herdara o seu temperamento e tinha moral para enfrentá-lo com argumentos no mínimo embaraçosos. Não que o desrespeitasse. Mas se houve uma mulher a quem aquele homem temia, era essa.
Era só saber que ía tomar umas cervejas com os amigos, que o tenente deixava aflorar uma alegria pueril. Tornava-se um liberal! Dava o carro para o filho dirigir, beijava a mulher em público, gabava-se da inteligência da filha, abria as portas da casa, convidava os vizinhos a provar as delícias de sua caça ou pesca, preparadas com maestria pela esposa prendada e simpática! Sim, seus esportes prediletos eram caça e pesca. E como trazia presas, trazia histórias de suas aventuras. Todos adoravam reunir-se em roda e escutar as narrativas detalhadas e emocionantes por horas a fio. E as piadas! Como sabia contar piadas! Um dia contou uma após a outra, o dia inteiro no bar perto de casa. Manteve a bodega cheia até à noite. Nunca mais pagou cerveja ali! Era recebido com honras e mimos!
Certa vez precisou parar o carro numa estrada um tanto deserta para trocar o pneu e foi surpreendido por um assaltante que o ameaçara com um canivete. Mais surpreendido foi o assaltante quando o tenente, que estava de cócoras, puxou o seu trinta e oito, disposto a atirar para matar! Só não o fez porque era noite, estava escuro, o meliante, de tão desesperado, saltou de um barranco e sumiu na escuridão. Noutra feita, um coronel tentou intimidá-lo para não ter que conceder-lhe um direito e ao perceber que não teria sucesso, ameaçou prendê-lo por indisciplina! Quando tentou obter o número de ordem do tenente, este lhe deu o número do calibre da arma que trazia consigo.
Mas os dias de glória estavam para ter fim. Os tempos de miséria e ignorância da infeliz infância deixaram um rastro indelével: esquistossomose mansônica. Uma verminose incidiosa consumira com o passar dos anos, o seu sistema portal hepático, causando fibrose no fígado, inchaço no baço e varizes no esfôfago. A filha estava, por ironia, para se formar em medicina, mas a doença se agravava e o físico atlético de antes, agora se convertia numa aparência inconcebível àquela personalidade tão forte e combativa... Um enorme e distendido abdome ascítico__barriga d'água__ olhos encovados, braços e pernas cada vez mais finos e franzinos como na infância...
Já na reserva, aposentado por invalidez, definhava a olhos vistos. Enlouquecia só de pensar na morte; às vezes se trancava num quarto por dias... às vezes sumia de casa, para desespero de todos, principalmente da mulher, esposa dedicada, tão sofrida, dependente e tímida. Às vezes reunia a família para recomendações funestas sobre como organizar as fianças e patrimônio após a sua morte... Enfrentou cirurgias e transfusões, exames e outros procedimentos com a bravura com que enfrentara bandidos no passado. Mas tudo resultou no mais previsível de todos os fins: morreu aos cinqüenta e três anos de idade, deixando mulher e três filhos, um neto, muitos amigos e histórias.
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Um comentário:
Muuuutho bom. Mas é, é um começo. Agora é entrar em cada um desses episodeos e viver literáriamente, numa espécie de transformação de uma memória em um experiência. Preencher as lacunas das névoas das lembranças com a ficção literária, já que você conhecia tão bem a personagem que protagonizou todos esses feitos.
No fim, tudo vai ser uma criação absolutamente tua, da imaginação das figuras e memórias que vão formar os textos fictícios. E aí, pra ilustrar essa característica não-facutal da narrativa, o texto pode valer-se de quais quer recursos - imagino sgt. Andrade caçando até dragões no interior da Bahia.
Retorne não apenas às lembranças que envolvem essa personagem, mas às lembranças dos pensamentos e imaginações que fertilizavam a cabeça da própria narradora da história. Isso é rico, e abre um campo narrativo de fatos com fantasias para colorir tudo.
Anseio por mais aventuras do Sgt. Andrade, e vou deixando claro o meu apreço a essa breve introdução da personagem.
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