Não sei quando ela se tornou tão amarga. Nem se foi um processo lento, imperceptível. Ou abrupto como um trauma.
Creio que a dureza da realidade, a soma das frustrações, o peso da idade, tudo junto, vai transformando sonhos em... Em um grande vazio existencial. Não se trata da velha e surrada depressão de que tanto já se falou. Não é um vazio primordial, mas um esvaziamento. Que não chega a tirar o sentido das coisas ou o ânimo de viver. Não chega a isolar socialmente ou alienar dos afetos e planos, em geral. Apenas empalidece o rosto, reduz a mímica, arrasta a fala, endurece o olhar, desilude, desinveste, distancia.
Os velhos não podem mesm_ nem devem_ nutrir intensa vitalidade mental, já que seu aparato físico, geralmente, não dá conta de tanto desejo.
Mas vê-la assim destituída da habitual energia, da pulsão contagiante que sempre marcou sua vida, vê-la reticente, ou incomodada com a vida, como se arrastasse correntes, sentenciada pela impotência humana é, no mínimo, desolador. Até porque nos remete à realidade de que esse tempo também chegará para cada um de nós. Com ou sem uma vida repleta de memórias, de feitos, de nobreza. "Quem viver verá" sua própria decadência.
Não que a velhice seja só dissabor. Há pessoas que encontram aí, seu elemento e na calma dos dias avançados em anos, a verdadeira paz, a serenidade, a sabedoria ou até mesmo o poder.
Mas ela... ela não se sente confortável em seu lugar de senhora. Porque não é senhora. É como se usurpasse o lugar de outrem. De alguém que, na verdade, ela odeia. Odeia as rugas incipientes, os quilos a mais, a flacidez, a previsibilidade de tudo e, ao mesmo tempo, a incerteza das coisas. Odeia ainda acreditar na sinceridade das pessoas que ama e eventualmente se decepcionar, mas, vez por outra, surpreende-se com a pureza alheia. Odeia a mediocridade da vida normal, mas deseja tanto a segurança! Adapta-se espantosamente, ao que é necessário, mas, não raro, tem surtos de pavor, terrores noturnos e um repentino e avassalador enjôo de tudo. Sente-se só. Tem medo. Mas, com frequência, busca seu canto solitário, longe de todos porque as pessoas lhe cansam, as luzes lhe cansam, os ruídos lhe cansam, movimentar-se lhe cansa, falar lhe cansa.
Não sei sequer dizer se ela já não era sempre e desde sempre ranzinza, ou se foi amargando com a idade. O fato é que agora qualquer rotina lhe entedia e qualquer desvio desta lhe aborrece.
Nunca a imaginei assim fragilizada. O tempo a derrubou. Nenhum outro desafio, nenhuma dificuldade ou perda a abalou assim. Jamais. Por isso o meu espanto. Essa muralha me pareceia edifício eterno, fortaleza intransponível, rocha inabalável. Achei que mesmo a velhice e a morte seriam para ela decorrências naturais da existência, vivenciadas a seu tempo com tranquilidade.
Mas quando contemplo seu olhar congelado, duro e sobrecarregado, sei que lutas se travam em sua alma e como ela odeia não estar vencendo esse último inimigo. Sua impaciência, sua crítica constante e ácida me dão pruridos. Sinto-me consumir. É uma tácita cobrança. É como se eu e o mundo todo lhe devêssemos algo. Como se lhe devêssemos muito. Como se não tivéssemos feito a lição de casa. Não sei se toda pessoa idosa... ou toda pessoa exigente... ou toda pessoa competente... ou todo ego inflado é que derrama assim sua frustração sobre o seu entorno. Mas imagino-me em seu lugar, tendo passado pela vida, carregando o estandarte de minhas convicções, lutando por meus sonhos, empunhando a espada das ilusões de honra, moral e crenças... e, tendo ganhado algumas batalhas, contudo perceber que a guerra não tem fim e que os soldados que se juntam à peleja têm outros métodos, outros alvos, outras armas... e até outros inimigos.
Os tempos mudam. A moral muda. O sentido de tudo vai mudando, caleidoscopicamente. Os troféus e medalhas do passado emprestam alguma identidade aos que nos seguem, mas cada um vai construindo a sua própria identidade, de modo que os mais velhos precisam ceder espaço aos mais jovens sem lhes atazanar mais do que a própria vida e suas demais vississitudes.
Ela vai resistir. Vai tentar superar. Vai se entregar a alguns prazeres que antes não se permitia, vai criar para si novos sentidos e novos desafios. Vai alcançar alguma sabedoria... mais para ser continente, apaziguar os menos experientes e confortar aos que ama. Não para fazer revoluções ou deixar grandes marcas. Ela vai, aos poucos, e não sem dor e luta, entender que, doravante, seu papel no mundo é acolher, confortar, resignar-se, tolerar e ser um porto seguro. Aos poucos ela vai se instalar no bastidores, até se familiarizar em assistir à cena e aplaudir, mais do que atuar.
A amargura também irá se dissipar, dando lugar uma doçura meiga. Assim como as crianças devem crescer e parar de fazer birra, assim como os jovens devem crescer e assumir responsabilidades, ela irá acceder e perceber que o velho papel, amarelado pelo tempo, não lhe cabe mais, mas que o tempo também nos farta, um dia.
Creio que a dureza da realidade, a soma das frustrações, o peso da idade, tudo junto, vai transformando sonhos em... Em um grande vazio existencial. Não se trata da velha e surrada depressão de que tanto já se falou. Não é um vazio primordial, mas um esvaziamento. Que não chega a tirar o sentido das coisas ou o ânimo de viver. Não chega a isolar socialmente ou alienar dos afetos e planos, em geral. Apenas empalidece o rosto, reduz a mímica, arrasta a fala, endurece o olhar, desilude, desinveste, distancia.
Os velhos não podem mesm_ nem devem_ nutrir intensa vitalidade mental, já que seu aparato físico, geralmente, não dá conta de tanto desejo.
Mas vê-la assim destituída da habitual energia, da pulsão contagiante que sempre marcou sua vida, vê-la reticente, ou incomodada com a vida, como se arrastasse correntes, sentenciada pela impotência humana é, no mínimo, desolador. Até porque nos remete à realidade de que esse tempo também chegará para cada um de nós. Com ou sem uma vida repleta de memórias, de feitos, de nobreza. "Quem viver verá" sua própria decadência.
Não que a velhice seja só dissabor. Há pessoas que encontram aí, seu elemento e na calma dos dias avançados em anos, a verdadeira paz, a serenidade, a sabedoria ou até mesmo o poder.
Mas ela... ela não se sente confortável em seu lugar de senhora. Porque não é senhora. É como se usurpasse o lugar de outrem. De alguém que, na verdade, ela odeia. Odeia as rugas incipientes, os quilos a mais, a flacidez, a previsibilidade de tudo e, ao mesmo tempo, a incerteza das coisas. Odeia ainda acreditar na sinceridade das pessoas que ama e eventualmente se decepcionar, mas, vez por outra, surpreende-se com a pureza alheia. Odeia a mediocridade da vida normal, mas deseja tanto a segurança! Adapta-se espantosamente, ao que é necessário, mas, não raro, tem surtos de pavor, terrores noturnos e um repentino e avassalador enjôo de tudo. Sente-se só. Tem medo. Mas, com frequência, busca seu canto solitário, longe de todos porque as pessoas lhe cansam, as luzes lhe cansam, os ruídos lhe cansam, movimentar-se lhe cansa, falar lhe cansa.
Não sei sequer dizer se ela já não era sempre e desde sempre ranzinza, ou se foi amargando com a idade. O fato é que agora qualquer rotina lhe entedia e qualquer desvio desta lhe aborrece.
Nunca a imaginei assim fragilizada. O tempo a derrubou. Nenhum outro desafio, nenhuma dificuldade ou perda a abalou assim. Jamais. Por isso o meu espanto. Essa muralha me pareceia edifício eterno, fortaleza intransponível, rocha inabalável. Achei que mesmo a velhice e a morte seriam para ela decorrências naturais da existência, vivenciadas a seu tempo com tranquilidade.
Mas quando contemplo seu olhar congelado, duro e sobrecarregado, sei que lutas se travam em sua alma e como ela odeia não estar vencendo esse último inimigo. Sua impaciência, sua crítica constante e ácida me dão pruridos. Sinto-me consumir. É uma tácita cobrança. É como se eu e o mundo todo lhe devêssemos algo. Como se lhe devêssemos muito. Como se não tivéssemos feito a lição de casa. Não sei se toda pessoa idosa... ou toda pessoa exigente... ou toda pessoa competente... ou todo ego inflado é que derrama assim sua frustração sobre o seu entorno. Mas imagino-me em seu lugar, tendo passado pela vida, carregando o estandarte de minhas convicções, lutando por meus sonhos, empunhando a espada das ilusões de honra, moral e crenças... e, tendo ganhado algumas batalhas, contudo perceber que a guerra não tem fim e que os soldados que se juntam à peleja têm outros métodos, outros alvos, outras armas... e até outros inimigos.
Os tempos mudam. A moral muda. O sentido de tudo vai mudando, caleidoscopicamente. Os troféus e medalhas do passado emprestam alguma identidade aos que nos seguem, mas cada um vai construindo a sua própria identidade, de modo que os mais velhos precisam ceder espaço aos mais jovens sem lhes atazanar mais do que a própria vida e suas demais vississitudes.
Ela vai resistir. Vai tentar superar. Vai se entregar a alguns prazeres que antes não se permitia, vai criar para si novos sentidos e novos desafios. Vai alcançar alguma sabedoria... mais para ser continente, apaziguar os menos experientes e confortar aos que ama. Não para fazer revoluções ou deixar grandes marcas. Ela vai, aos poucos, e não sem dor e luta, entender que, doravante, seu papel no mundo é acolher, confortar, resignar-se, tolerar e ser um porto seguro. Aos poucos ela vai se instalar no bastidores, até se familiarizar em assistir à cena e aplaudir, mais do que atuar.
A amargura também irá se dissipar, dando lugar uma doçura meiga. Assim como as crianças devem crescer e parar de fazer birra, assim como os jovens devem crescer e assumir responsabilidades, ela irá acceder e perceber que o velho papel, amarelado pelo tempo, não lhe cabe mais, mas que o tempo também nos farta, um dia.
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