quinta-feira, 14 de agosto de 2008

O Alvo

Eduardo olhava através da cortina diáfana, próximo à janela -Agora é claro lá fora e escuro aqui dentro. Posso vê-los, mas eles não sabem que estou aqui. Não podem me ver. É como se eu fosse invisível. Aliás eu poderia até mesmo atingi-los daqui. Eles estão tão indefesos agora! Brincam despreocupados como se anjos os protegessem. Seria bem fácil atirar daqui, e acertar a cabeça de um deles. Há tantas janelas no prédio... quem saberia de onde partiu o projetil assassino? -Eduardo brincava de rolar uma pequena bola de gude entre os dedos da mão direita...
- Eduardo, vem almoçar, filho!
Eduardo tinha que conviver com um par de muletas e um colete ortopédico. Nascera com algumas deformidades ósseas. Sua aparência só não era pior do que seu humor. Achava mais difícil suportar as pessoas, do que as tralhas corretivas e o estigma da doença que carregava. Andava com dificuldade, desajeitado...
Além disso, tinha aparelho nos dentes, e era magro como um graveto muito torto. Acostumara-se à solidão. Gostava dela. Era das pessoas que não gostava. Ir à escola era um tormento.
Não deu importância ao convite da mãe, para almoçar. Continuou à espreita, atrás da cortina, engendrando um plano atrás do outro para se livrar da algazarra dos moleques lá embaixo. Queria dar uma lição àquela corja de retardados que não sabiam fazer nada além de rir e jogar seus joguinhos pueiris, correndo, pulando e rolando como animais. -Como podem perder tanto tempo com essas bobagens?
Mais tarde, alguém bateu à porta do quarto. Eduardo, num sobressalto, afastou-se da janela e de seus delírios, e sentiu o coração disparar, como se pego em flagrante. -Quem é?
-Você tem uma visita, meu filho! É a Sara. Ela veio lhe trazer algo.
- Um momento. Essa não!-pensou- Só me faltava agora essa garota vir me fazer uma visita de cortesia, demonstrar seu desprendimento e nobreza por se importar com um pobre diabo que todos evitam.
Eduardo se ajeitou à beira da cama, deixou suas muletas ao alcance das mãos e ordenou que Sara entrasse. Meio sem graça, pediu-lhe que se sentasse.
-Que novidade é essa, você por aqui?
-Por que? Não posso visitar um amigo?
-Desde quando sou seu amigo?
-Você não está sendo mesmo nada amigável.
-Diga logo a que veio e me deixe em paz. Aposto que veio xeretar. Ver como vive o monstrengo repulsivo!
-É mais ou menos isso... Confesso que tinha muita curiosidade de saber como era o seu... esconderijo.
Eduardo se sentiu ultrajado. Teve que se esforçar para manter o controle diante de tanta intromissão e ousadia. -Quem ela pensa que é para vir aqui e me provocar?-Pensava.
Prosseguiu em tom grave:
-Isto é um quarto. Não um esconderijo. Não há nada de especial aqui, portanto você já pode ir embora.
-Não, não há mesmo nada de excêntrico, nada de curioso. É um quarto bem comum, aliás. Eu esperava mais...
-Como assim, garota? Você é louca ou o quê? O que quer?
-Eu morria de vontade de conhecê-lo na intimidade... saber que mistérios se encerram neste mundo fechado em que você passa tanto tempo.
-Você é totalmente louca... Nem sei porque a recebi...
-Ah, mas eu sei... Queria que eu visse como você vive, como é normal, se é que posso dizer assim. Queria agir como um cavalheiro para, quem sabe, me conquistar... Não é verdade?
-Conquistar você? Nós temos 13 anos! Que papo é esse? -Eduardo não queria crer, mas se sentia um tanto excitado com tudo aquilo.
-Quatorze! Eu já fiz quatorze.
-Não importa. Saia daqui. Você veio só me encher o saco. É como aqueles idiotas lá embaixo, que não têm o que fazer.
-Claro que não! Eu vim para lhe fazer uma visita, lhe conhecer melhor. Confesso que tinha curiosidade, mas não era só isso... -Sara pareceu hesitar por um momento, mas concluiu - ... eu me apaixonei por você.
-Tá. Você quer que eu acredite...
-Eu estou apaixonada por você, Eduardo. Apaixonada.- Repetiu e se lançou aos pés de Eduardo com olhar suplicante, pôs as mãos sobre seus joelhos, o que tornava a situação ainda mais embaraçosa, e aproximou seu rosto do dele. Eduardo sentiu o perfume de Sara, o seu hálito, a sua respiração um tanto ofegante. Não sabia o que fazer, nem o que pensar. Num impulso agarrou as muletas, mas não teve forças para se erguer. Sara fechou os olhos, beijou-o suavemente nos lábios e, então, afastou-se lentamente, agora fitando-o séria. Ergueu-se, recuou alguns passos, pegou a bolsa que deixara sobre a cadeira e tirou dali alguma coisa.
-Trouxe uma isso pra você.
Deixou um pequeno embrulho sobre a cama e saiu sem dizer mais nada.
Eduardo ficou ainda alguns instantes imobilizado, atordoado como se sob efeito de uma explosão. Mas seus sentidos foram recuperando a realidade e ele estendeu a mão, alcançou o pequeno pacote e o desembrulhou. Dentro dele havia uma pequena caixa e, nela, uma bola de gude e um bilhete: "Eduardo... há tantas maneiras de atingir alguém... Você sequer me notava enquanto eu lhe via de minha janela. Por muito tempo observei você, li seus pensamentos, seu ódio, sua inveja, sua solidão... E você me atingiu com seu sofrimento. Apaixonei-me por seu olhar carregado de desejo pela vida, pela liberdade, pela vagabundagem dos moleques na rua... Eu faria qualquer coisa para vê-lo feliz."
Eduardo foi o mais depressa que podia até à janela e olhou os prédios em volta. Percorreu a paisagem até se deparar com Sara emoldurada pela janela de seu quarto, no segundo prédio à frente, dois andares acima.

2 comentários:

Victor Meira disse...

Que coisa!
Muito singelo, muito sensível. As personagens estão muito bem construidinhas.

Agora não sei o que será de Eduardo. Deve ter sido o primeiro beijo dele. E se Sara o deixar?

Anônimo disse...

Bom, Victor, eu acho que sara não deixará. Mas a minha principal intenção com este conto foi lançar um olhar para dentro e descobrir o que nos identifica ou complementa para que possamos nos amar mesmo que aparentemente não sejamos protótipos de perfeição e beleza.