_Doutor, eu quero saber se sou estéril.
_Não. Você só está infértil, mas isso é passageiro.
_E o que posso fazer para que seja mais passageiro ainda?!
_Ah, eu lhe receitarei uma droga que estimule a fertilidade.
_ Mas isso não pode trazer algum risco? Digo... seria uma coisa artificial...
_Bom, sempre há o risco de, digamos, uma produção em série.
_Mas doutor, eu não estou interessada em produção em série! Quero qualidade e não quantidade!
_Bem, você pode ficar como está, relaxar e esperar que as coisas fluam naturalmente...
_Não vai dar... Eu já tentei. Não me ocorre nada. Já abortei não sei quantas vezes... Não concebo nada que preste!
_É pegar ou largar...
_Doutor, como o senhor é frio! Não percebe o meu drama?
_Sim, o seu e o de todas as pessoas que me procuram diariamente. E estou lhe oferecendo a ajuda de que necessita. Não quer consultar o seu...
_Não, não... Minha produção é independente...
_Entendo.
_Mas... e se eu produzir um monstro? Uma anomalia?!
_ Pelo menos será original. Poderá ser mais lucrativo. Sabe como as pessoas são atraídas pelo novo, pelo diferente...
_Mas seria mais trabalhoso... e perigoso.
_Certamente. Vai querer tomar o estimulante de fertilidade?
_É uma espécie de adubo, isso? Do jeito que o senhor fala!
_Não. É uma droga que acelera os impulsos nervosos e ativa as áreas cerebrais ligadas à criatividade, memória e linguagem.
_Dito assim, parece tão sem alma...
_Escute. Eu não prescrevo almas. Só química! O resto é com você.
_Tudo bem, doutor. Só queria que o senhor entendesse que pra um escritor, qualquer produção é como um filho. Mesmo que não seja nenhuma obra de arte... Mas o senhor nunca vai entender, não é?
_Não. O meu cérebro foi programado apenas para o raciocínio empírico, científico. Poesia é com vocês, poetas. Eu não preciso disso. Mas vocês parecem precisar de nós, cientistas... e de nossas químicas desalmadas para produzir seus delírios artísticos... Se não são loucos o bastante, que a lucidez alheia produza a sua indispensável loucura!
_Como não precisa, se é a inépcia dos poetas em crise que compra e sustenta a sua ciência?
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3 comentários:
Que legaaaaaaaal!!!
Hahaha, muito bom. No começo eu achei que a narrativa ia permaneçer numa órbita metafórica em relação ao assunto da poética em si. Conforme se dá a leitura, o centro do texto vai puxando esse leitor em órbita pra dentro de um corpo praticamente denotativo, sem se desgrudar da beleza figurativa.
Dois ótimos personagens, duas faces do escritor.
Muito bacana!
E, legal, qual seria a "droga" do artista, representada por essa substância química? Seria a mescalina do Huxley? O não-comunismo do Orwell? A entropia do Gullar? O cotidiano humor do Veríssimo? A antropsicanálise do Zweig? O medo do Poe? O estilo estético do Pamuk? O absurdo do Camus, a existência do Sartre?
A droga é o impulso do artista? Se for, há produção sem droga? A depressão não-criativa, por si, é droga - já que move o artista, eventualmente, a criar uma metáfora sobre isso?
Essa foi boa mesmo, cara.
Ah, sei lá... a droga pode ser todas ou qualquer uma dessas. Mas é sempre algo artificial no sentido de vir apenas do maquinal, consciente, factual, sem uma mentalização, sem uma representação interna... Enfim, aquelas babozeiras apenas comerciais que se prestam a uma cultura efêmera, supérflua, que muitas vezes é fruto de uma viagem química mesmo, e por ter uma aparência "estranha" ou diversa da estética exata, cotidiana, é chamada de "arte", mas que não tem elaboração, essência, alma, consistência! A "droga" do artista basta ser a sua própria loucura! Eu acho.
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